Inovação sem inteligência regulatória é apenas invenção
- Isis Valle
- 01/03/2024
- 12:20 pm
“Um produto ou processo novo ou melhorado (ou uma combinação dos dois) que difere significativamente dos produtos ou processos anteriores da unidade e que foi disponibilizado a potenciais utilizadores (produto) ou colocado em uso pela unidade (processo)”. É assim que o Manual de Oslo define inovação. Este documento da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (ECDE) é a principal fonte internacional de diretrizes para coleta e uso de dados sobre atividades inovadoras da indústria.
Ou seja, uma nova invenção só será considerada uma inovação se disponibilizada aos utilizadores. No caso de alimentos, consumidores. O novo produto precisa chegar ao mercado. No contexto de um mercado regulado como o de alimentos, no Brasil, ele precisa ser passível de regularização perante o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS). Alimentos são uma das classes de produtos com impacto direto na saúde da população e, por isso, estão sujeitos à vigilância sanitária.
Isso significa que produtos alimentícios não podem ser colocados no mercado sem antes cumprirem com uma série de regras destinadas a promover, proteger e recuperar a saúde da população. É isso mesmo, o SNVS é um dos braços do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), que tem como objetivo garantir o acesso à saúde para toda a população brasileira, de forma integral. Então, quando falamos de inovação na área de alimentos, também estamos falando de saúde coletiva da população brasileira.
Por onde começar?
Começamos justamente pela forma de regularização perante o SNVS. Ao termos uma grande ideia de inovação, precisamos inicialmente averiguar se essa grande ideia pode de fato chegar às prateleiras do comércio e ocupar o mundo real
na forma de um produto existente regulatoriamente. Isso é o que se chama de enquadramento, que depende de diversos fatores: das matérias-primas utilizadas; do processamento pelo qual essas matérias-primas passam; da forma de apresentação do produto; da finalidade e condições de uso propostas; das especificações de identidade, pureza e qualidade do produto; e até no que se pretende veicular na rotulagem.
Tudo isso precisa ser avaliado para verificar se a inovação obtida atende um padrão de identidade e qualidade (PIQ), requisito técnico (RT) ou requisito sanitário (RS) estabelecido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ou pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) e como ela se encaixa no Sistema Brasileiro de Categorização dos Alimentos (você sabia que isso existia?).
Os PIQs, RTs, RSs e o Sistema Brasileiro de Categorização dos Alimentos refletem esforços de décadas dos órgãos regulatórios de estabelecer características mínimas para produtos alimentícios receberem determinados nomes, serem seguros para consumo, servirem a um determinado propósito e não causarem engano ao consumido quanto à natureza, composição e qualidade do que ele vai consumir.
Se a sua inovação não se enquadra em nenhum desses padrões, requisitos e sistema, há uma grande chance de ela não existir regulatoriamente. Ou seja, depois de um longo período de pesquisa, desenvolvimento, testes e mais testes, você obtém um produto que não consegue colocar de forma regularizada no mercado. E é aí começam as elocubrações de “e se vendermos assim mesmo, já que já investimos tanto…?” e vive-se assombrado pelo fantasma da fiscalização.
Diariamente vemos no Diário Oficial da União (DOU) ações de proibição de fabricação, distribuição, comercialização e uso e ainda de recolhimento de produtos irregulares. Isso sem contar em notificações das vigilâncias sanitárias locais e as ações de fiscalização do Mapa.
Regularização de alimentos
Ao cruzar os regulamentos da Anvisa e do Mapa com as categorias do Sistema Brasileiro de Categorização dos Alimentos, conseguimos identificar o melhor enquadramento dos produtos e os requisitos específicos de composição e rotulagem e possibilidades de marketing. A partir do enquadramento, verifica-se se a inovação obtida deve ser registrada na Anvisa ou no Mapa ou apenas comunicada na vigilância sanitária local ou, muito em breve, notificada na Anvisa. Para cada tipo de produto e cada forma de regularização, será necessário um conjunto de documentos que o fabricante deverá ser capaz de providenciar, proporcional ao risco que eles representam para a saúde da população. É muito importante ter isso em vista durante o desenvolvimento.
Agora a verdadeira fronteira da inovação é quando, após toda essa verificação, descobre-se que a inovação é tão relevante que constitui o que a Anvisa considera um novo alimento ou um novo ingrediente. Grosso modo, um novo alimento ou ingrediente é aquele sem histórico de consumo seguro no Brasil por pelo menos 25 anos, em quantidades e forma de uso semelhantes aos utilizados na alimentação regular. Nesse caso, é preciso compor todo um dossier e um relatório técnico-científico para demonstrar a segurança de ingestão desse novo alimento pela população brasileira todos os dias pelo resto da vida. Pode-se até verificar a necessidade de solicitação de um novo PIQ pelo Mapa ou um novo RS pela Anvisa!
Parece um longo processo e é mesmo. E não acabou por aí. Até agora estávamos falando de regulamentação específica ao tipo de produto que estamos desenvolvendo. Porém, também é necessário conhecimento da regulamentação geral de alimentos para atendimento de critérios como contaminantes microbiológicos, metais pesados, resíduos de agrotóxico e de medicamentos veterinários, por exemplo. Além de familiaridade com a regulamentação transversal aplicável a todos os produtos sujeitos à vigilância sanitária.
Muitas vezes, se todos esses aspectos não são levados em consideração desde o início da conceitualização do produto, pesquisa e desenvolvimento, fica difícil, ou mesmo até impossível amarrar todas essas pontas para apresentar para o órgão regulamentador pertinente. E é por isso que pesquisa e desenvolvimento e inteligência regulatória devem andar de mãos dadas desde o início de todo o processo. Para evitar que um ousado conceito, com grandes investimentos, se torne uma mera invenção e nunca chegue a ser de fato uma inovação para os consumidores e um produto rentável para os fabricantes.
Havia uma expectativa, pela Análise de Impacto Regulatório (AIR) sobre a modernização do marco regulatório, fluxos e procedimentos para novos alimentos e novos ingredientes, de que o modelo já adotado para uso de constituintes em suplementos alimentares seria adaptado para as demais categorias de alimentos. Dessa forma, após aprovado, o uso do novo alimento ou novo ingrediente seria permitido para a empresa peticionante até sua inclusão em lista normativa específica, o que mantinha uma proteção de mercado pelo menos temporária.
Entretanto, todo o texto dos artigos 7º, 8º e 9º da RDC nº 839/2023 é construído de forma a viabilizar o uso de qualquer ingrediente aprovado por qualquer empresa. Infelizmente, a redação parece até penalizar aquelas empresas que, além de investirem na pesquisa e desenvolvimento ainda se comprometeram com o rígido processo de revisão de seus achados por pares para publicação em periódicos científicos.
Como será que vai se comportar a indústria de ingredientes pioneira, inovadora, que arca com o grande ônus de investimento técnico, científico e financeiro para o desenvolvimento de novos produtos diante da facilidade de usufruto de seus esforços por tipos conservadores de inovação ou com baixa tecnologia com pouco investimento agora estabelecida?