Inteligência Regulatória em Alimentos

Nova RDC para novos alimentos/ingredientes: será o fim da exclusividade comercial?

Sim. Será o fim da exclusividade comercial para novos alimentos e novos ingredientes. Eu explico: a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) n° 839/2023 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) dispõe sobre a comprovação de segurança e a autorização de uso de novos alimentos e novos ingredientes para o mercado Brasileiro. Ela foi publicada no apagar das luzes de 2023, em 18 de dezembro. O texto como um todo só entrará em vigor em 16 de março de 2024. Porém, três artigos já passaram a vigorar no que agora já é ano passado, em 26 de dezembro de 2023.

Essa RDC veio atualizar os requerimentos legais para novos alimentos e novos ingredientes, que, no Brasil, datam de vinte e cinco anos. Essa categoria de alimentos é atualmente regida – e continuará sendo até março – pela Resolução (RES) n° 16/1999, que estabelece o Regulamento referente a procedimentos para registro de alimentos e ou novos ingredientes. Essa Resolução ainda se restringe a registro na área de alimentos como o procedimento legal e obrigatório, ainda segundo o Decreto-Lei n° 986/1969, que Institui Normas Básicas Sobre Alimentos e que também anda precisando de uma atualização.

 

Registro e dispensa da obrigatoriedade de registro

Quem atua na área de regularização de alimentos, seja na consultoria como eu, seja na indústria, sabe que o registro já não é mais a única maneira de regularizar alimentos há um bom tempo. O Regulamento Técnico sobre o manual de procedimentos básicos para registro e dispensa da obrigatoriedade de registro de produtos pertinentes à área de alimentos, de 2000, trouxe uma lista de categorias de alimentos dispensados da obrigatoriedade de registro, que já era maior do que a lista de categorias de alimentos com registro obrigatório. Hoje essas listas estão na RDC n° 27/2010 – Categorias de alimentos e embalagens isentos e com obrigatoriedade de registro sanitário, que já foi alterada três vezes. E a primeira é quase quatro vezes maior do que a segunda.

Um maior número de categorias de alimentos dispensados de registro se tornou possível com o desenvolvimento sistemático de Padrões de Identidade e Qualidade (PIQs), Regulamentos Técnicos (RT) ou Requisitos Sanitários (RS) e demais diretrizes estabelecidas para as diferentes categorias de alimentos pelos órgãos reguladores, tais como a Anvisa e o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa).

Antes dos PIQs, RTs e RSs, cabia aos fabricantes apresentarem seus PIQs para os órgãos reguladores. E, com o registro, sem ou com menor necessidade de seguir um padrão pré-determinado, era mais fácil conseguir colocar no mercado um produto com características únicas. Junto com os esforços da área de marketing das empresas, produtos inovadores tinham grande destaque no mercado.

 

Como inovar em um mercado regulamentado?

Há quem defenda que a existência dos padrões para cada tipo de alimento e a obrigatoriedade de cumpri-los – sob pena de infração sanitária e em (na) esfera civil, administrativa e penal – seja uma barreira à inovação para a indústria de alimentos. Como acadêmica da área de ciências sociais e profissional de saúde coletiva, defendo que é uma questão de promoção, proteção e promoção da saúde da população brasileira, além de direito do consumidor que, antes de consumidor, é cidadão.

O Manual de Oslo, a principal fonte internacional de diretrizes para coleta e uso de dados sobre atividades inovadoras da indústria, define inovação como “um novo produto ou processo melhorado (ou combinação deles) que difere significativamente dos produtos ou processos anteriores da unidade e que foi disponibilizado a potenciais utilizadores (produto) ou colocado em uso pela unidade (processo)” (tradução livre do original em inglês).

Note que a inovação, por definição, pressupõe a disponibilização do novo produto aos potenciais utilizadores. Em um mercado regulado, como o de alimentos – por possuir impacto direto na saúde da população –, a disponibilização regularizada do novo produto aos potenciais utilizadores está condicionada à conformidade com os critérios estabelecidos pelos órgãos reguladores.

A lista de categorias de alimentos com registro obrigatório incluía diversas categorias que em 2018 foram agrupados em uma única categoria com o Marco Regulatório de Suplementos Alimentares.

Estamos falando de alimentos para gestantes e nutrizes, alimentos para praticantes de atividade física; suplementos vitamínicos e minerais, por exemplo. O Marco foi para essa nova categoria de alimentos, mas suas disposições impactaram todo o setor.

A partir de então, o conceito de alimentos isentos de registros por seguirem os PIQs, RTs e RSs e utilizarem os ingredientes das listas positivas passou a ser mais amplamente disseminado e utilizado. E aí surge uma pergunta quando todo mundo só pode fabricar produtos alimentícios usando os mesmos ingredientes de uma lista positiva, como se essa lista fosse uma despensa de cozinha com tipos de ingredientes limitados para todos os fabricantes de suplementos alimentares do Brasil utilizarem para fabricarem seus produtos…

 

Como se diferenciar quando todo mundo só pode utilizar os mesmos ingredientes?

Saindo da lógica de registro – que era para o produto final disponibilizado ao consumidor – e entrando na lógica de listas positivas, a indústria entendeu que a forma de se destacar em um mercado que tinha tudo para se tornar cada vez mais homogêneo era incluir novos ingredientes nas listas positivas! Porém, não qualquer ingrediente.

Existia, até a RDC n° 839/2023, uma proteção de mercado para o peticionante de uma substância aprovada em avaliação de segurança e eficácia pela Anvisa para uso em suplementos alimentares. O resultado da avaliação da petição era publicado por meio de Resolução (RE) no Diário Oficial da União (DOU), sendo permitido o uso do constituinte apenas pelo peticionante até que fossem atualizadas as listas positivas da IN n° 28/2018 – Listas de constituintes, de limites de uso, de alegações e de rotulagem complementar dos suplementos alimentares.

Apesar de ser uma norma de atualização periódica, a IN n° 28/2018 só foi atualizada duas vezes em quatro anos e meio. A última atualização foi em outubro de 2021. Ou seja, os novos ingredientes aprovados desde então estão com sua parcela de mercado protegida por mais de dois anos. Apesar de estarem aprovados, esses ingredientes só podem ser utilizados pelos peticionantes.

No entanto, sabia-se que essa proteção seria perdida com uma nova atualização da IN n° 28/2018. Mesmo assim, havia uma forma de mantê-la: desenvolvendo ingredientes com especificações próprias, que não tivessem

monografia nos compêndios de referência aceitos pela Anvisa, tais como o Codex Alimentarius, as Farmacopeias Brasileira, Americana ou Europeia. A indústria começou um forte investimento técnico, científico e financeiro para a pesquisa, desenvolvimento e aprovação de novos ingredientes não compendiados. Esses ingredientes, na regulamentação anterior à RDC nº 839/2023, teriam sua proteção de mercado durante todo o ciclo de vida do ingrediente. Contudo, essa proteção acabou de cair.

 

Artigos 7º, 8º e 9º da RDC nº 839/2023

Os dispositivos da nova RDC para novos alimentos e novos ingredientes que já estão vigentes – os artigos 7º, 8º e 9º – dispõem sobre a publicidade da decisão da Anvisa quanto à sua análise da avaliação de segurança e eficácia peticionada, a publicação de pareces, e sobre informações confidenciais ou sigilosas.

A partir de agora, apenas os indeferimentos serão publicados em Resolução publicada no DOU (é o fim de uma era de verificar os deferimentos todas as segundas-feiras!). Os deferimentos serão informados para o peticionante por ofício eletrônico do parecer, em uma versão integral e uma proposta de versão pública. O peticionante pode se manifestar de acordo com as disposições da RDC nº 839/2023 para indicar informações confidenciais ou sigilosas na versão pública.

Os novos alimentos e novos ingredientes estarão autorizados após aprovação do parecer público de deferimento pela Anvisa e manifestação do peticionante sobre a confidencialidade e mediante publicação no DOU da atualização das listas positivas. A especificação própria do novo alimento ou novo ingrediente cuja avaliação tenha sido baseada em dados, provas científicas e estudos públicos será publicada em IN específica. Note que não há mais uma restrição de uso para o peticionante.

Havia uma expectativa, pela Análise de Impacto Regulatório (AIR) sobre a modernização do marco regulatório, fluxos e procedimentos para novos alimentos e novos ingredientes, de que o modelo já adotado para uso de constituintes em suplementos alimentares seria adaptado para as demais categorias de alimentos. Dessa forma, após aprovado, o uso do novo alimento ou novo ingrediente seria permitido para a empresa peticionante até sua inclusão em lista normativa específica, o que mantinha uma proteção de mercado pelo menos temporária.

Entretanto, todo o texto dos artigos 7º, 8º e 9º da RDC nº 839/2023 é construído de forma a viabilizar o uso de qualquer ingrediente aprovado por qualquer empresa. Infelizmente, a redação parece até penalizar aquelas empresas que, além de investirem na pesquisa e desenvolvimento ainda se comprometeram com o rígido processo de revisão de seus achados por pares para publicação em periódicos científicos.

Como será que vai se comportar a indústria de ingredientes pioneira, inovadora, que arca com o grande ônus de investimento técnico, científico e financeiro para o desenvolvimento de novos produtos diante da facilidade de usufruto de seus esforços por tipos conservadores de inovação ou com baixa tecnologia com pouco investimento agora estabelecida?